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Foto do escritorJulio Cesar França Franco

A CARIDADE E A JUSTIÇA

No topo do calvário erguia-se uma cruz. E pregado sobre ela o corpo de Jesus. Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas Corriam pelo ar como grandes manadas De búfalos. A Lua, ensangüentada e fria, Triste como um soluço imenso de Maria, Lançava sobre a paz das coisas naturais A merencória luz feita de brancos ais. As árvores que outrora em dias de calor Abrigaram Jesus, cheias de mágoa e dor, Sonhavam, na mudez hercúlea dos heróis. Deixaram de cantar todos os rouxinóis. Um silêncio pesado amortalhava o mundo. Unicamente ao longe o velho mar profundo Descantava chorando os salmos da agonia. Jesus, quase a expiar, cheio de dor, sorria. Os abutres cruéis pairavam lentamente A farejar-lhe o corpo; às vezes de repente Uma nuvem toldava a face do luar, E um clarão de gangrena, estranho, singular, lançava sobre a cruz uns tons esverdeados. Crocitavam ao longe os corvos esfaimados. Mas passado um instante a Lua branca e pura Irrompia outra vez de grande névoa escura, E inundavam-se então as chagas de Jesus nas pulverizações balsâmicas da luz.

No momento em que havia a grande escuridão, Cristo sentiu alguém aproximar-se, e então Olhou e viu surgir, no horror das trevas mudas, O covarde perfil sacrílego de Judas. O traidor, contemplando o olhar do Nazareno, Tão cheio de desdém, tão nobre, tão sereno, Convulso de terror, fugiu... Mas nesse instante Surgiu-se frente a frente um vulto de gigante, Que bradou: -É chegado enfim o teu castigo!- O traidor teve medo e balbuciou: - Amigo, Que pretendes de mim? Dize, por quem esperas? Quem és tu? - - "O Remorso, um caçador de feras, Disse o gigante. Eu ando há mais de seis mil anos A caçar pelo mundo as almas dos tiranos, Do traidor, do ladrão, do vil, do celerado; E depois de as prender tenho-as encarcerado na enormíssima jaula atroz da expiação. E quando eu entro ali na imensa confusão de tigres, de leões, d'abutres, de chacais, de rugidos febris e de gritos bestiais, Fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto; Caim baixa a pupila e vai deitar-se a um canto. E quando em suma algum dos monstros que relutar Azorrago-o co'a luz febril do meu olhar, Dando-lhe um pontapé, como num cão mendigo, Já sabes quem eu sou, Judas; anda comigo!"

Como um preso que quer comprar um carcereiro, Judas tirou do manto a bolsa de dinheiro, Dizendo-lhe: - Aqui tens, e deixa-me partir...- O gigante fitou-o e começou a rir, Houve um grande silêncio. O infame Iscariote, Como um negro que vê a ponta dum chicote, Tremia. Finalmente o vulto respondeu:

"Judas, podes guardar este dinheiro: é teu. O oiro da traição pertence-lhe, ao traidor, Como o riso à inocência e como o aroma à flor.

Esse oiro é para ti o eterno pesadelo. Oh! Guarda-o, guarda-o bem, que eu quero derretê-lo, E lançar-to depois cáustico, vivo, ardente, Em cima da consciência, a pútrida, a execrável! Com ele hei-de fundir a algema inquebrantável, A grilheta que a tua esquálida memória Trará, arrastará pelas galés da História, Durante a eternidade ilimitada e calma. Essa bolsa que aí tens é o cancro da tua alma: Já se agarrou a ti, ligou-se ao criminoso, Como a lepra nojenta ao peito do leproso, Como o ímam ao ferro e o verme à podridão. Não poderás jamais largá-la da tua mão! És traidor, assassino, hipócrita, perjuro; A tua alma lançada em cima dum monturo Faria nódoa. É tudo o que há de mais vil, Desde o ventre do sapo à baba do reptil. Sai da existência! Dize à sombra que te acoite. Monstro, procura a paz! Verme, procura a noite! Que o sol não veja mais um único momento O teu olhar oblíquo e o teu perfil nojento. Esse crime, bandido, é um crime que profana Todas as grandes leis da consciência humana, Todas as grandes leis da vida universal. Esconde-te da morte, assim como um chacal No seu covil. Adeus, causas-me nojo e asco. Deixo dentro de ti, Judas o teu carrasco! És livre; adeus. Já brilha o astro matutino, E eu, caçador feroz,cumprindo o meu destino, Continuarei caçando os javalis nos matos."

E dito isto partiu a procurar Pilatos.

Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada. Judas, ficando só, meteu-se pela estrada, Caminhando ligeiro, impávido, terrível. Como um homem que leva um fim imprescritível, Uma ideia qualquer, heroica

e sobranceira; de repente estacou. Havia uma figueira Projetando na estrada a larga sombra escura; Judas, desenrolando a corda da cintura, Subia acima, atou-a a um ramo vigoroso, dando um laço à garganta. O seu olhar odioso Tinha nesse momento um brilho diamantino, Recto como um juiz, forte como o destino.

Nisto ecoou através do negro Céu profundo A voz celestial de Jesus moribundo, Que lhe disse: - Traidor, concedo-te o perdão. Além de meu carrasco és inda o meu irmão. Pregaste-me na cruz; é o mesmo, fica em paz. Eu costumo esquecer o mal que alguém me faz. Eu tenho até prazer, bem vês, no sacrifício. Não te cause remorso o meu atroz suplício, Estes golpes cruéis, estas horríveis dores. As chagas para mim são outras tantas flores"

Judas ficou ao longe os cerros do calvário, E erguendo-se viril, soberbo, extraordinário, exclamou: - Não aceito a tua compaixão. A justiça dos bons consiste no perdão. Um justo não perdoa. A justiça é implacável, A minha acção é infame, hedionda, miserável; preguei-te nessa cruz, vendi-te aos fariseus. Pois bem, sendo eu um monstro e sendo tu um Deus, Vais ver como esse monstro, ó pobre Cristo nu, É maior do que Deus, mais justo do que tu: À tua caridade humanitária e doce, Eu prefiro o dever terrível! E enforcou-se.

ABILIO GUERRA JUNQUEIRO

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